08 março 2006

Dia internacional da mulher


Em homenagem ao dia da mulher, resolvi postar aqui uma bela crônica de Ricardo Kelmer:
Nesta crônica quero fazer uma homenagem a um tipo especial de mulher. Eu a chamo de mulher selvagem. Sua beleza é arisca, arredia aos modismos. Ela encanta por um não-sei-quê indefinível... mas que também agride o olhar. É um tipo raro e não tem habitat definido: vive em Catmandu, mora no prédio ao lado ou se mudou ontem para Barroquinha. E não deixou o endereço.

A mulher selvagem em quase tudo é uma mulher comum: pega metrô lotado, aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão que viu uma loba na espreita. Você se assusta, olha de novo... e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim. É ela, a mulher selvagem.

A sociedade tenta mas não pode domesticá-la, ela se esquiva das regras. Quando você pensa que capturou, escapole feito água entre os dedos. Quando pensa que finalmente a conhece, ela surpreende outra vez. Tem a alma livre e só se submete quando quer. Por isso escolhe seus parceiros entre os que cultuam a liberdade. E como os reconhece? Como toda loba, pelo cheiro, por isso é bom não abusar de perfumes. Seu movimento tem graça, o olhar destila uma sensualidade natural - mas, cuidado, não vá passando a mão. Ela é um bicho, não esqueça. Gosta de afago mas também arranha.

Repare que há sempre uma mecha teimosa de cabelo: é o espírito selvagem que sopra em sua alma a refrescante sensação de estar unida à Terra. É daí que vem sua beleza e força. E sua sabedoria instintiva. Sim, ela é sábia pois está em harmonia com os ritmos da Natureza. Por isso conhece a si mesma, sabe dos seus ciclos de crescimento e não sabota a própria felicidade. Como todo bicho ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas. Riponga do mato, gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine. E adora dançar em noite de lua. Ah, então é uma bruxa... Talvez, ela não liga para rótulos. Sabe que a imensidão do ser não cabe nas definições.
Mulheres gostam de fazer mistério. Ela não, ela é o mistério. Por uma razão simples: a mulher selvagem sabe que a vida é uma coisa assombrosa e perfeita, e viver o mais sagrado dos rituais. Ela sente as estações e se movimenta de acordo com os ventos, rindo da chuva e chorando com os rios que morrem. Coleciona pedrinhas, fala com plantas e de uma hora para outra quer ficar só, não insista. Não, ela não é uma esotérica deslumbrada mas vive se deslumbrando: com as heroínas dos filmes, aquela livraria nova, o CD do fulano... Ela se apaixona, sonha acordada e tem insônia por amor. As injustiças do mundo a angustiam mas ela respira fundo e renova sua fé na humanidade. Luta todos os dias por seus sonhos, adormece em meio a perguntas sem respostas e desperta com o sussurro das manhãs em seu ouvido, mais um dia perfeito para celebrar o imenso mistério de estar vivo.

Ela equilibra em si cultura e natureza, movendo-se bela e poética entre os dois extremos da humana condição. Ela é rara, sim, mas não é uma aberração, um desvio evolutivo. Pelo contrário: ela é a mais arquetípica e genuína expressão da feminilidade, a eterna celebração do sagrado feminino. Ela está aí nas ruas, todos os dias. A mulher selvagem ainda sobrevive em todas as mulheres mas a maioria tem medo e a mantém enjaulada. Ela é o que todas as mulheres são, sempre foram, mas a grande maioria esqueceu.

Felizmente algumas lembraram. Foram incompreendidas, sim, mas lamberam suas feridas e encontraram o caminho de volta à sua própria natureza. Esta crônica é uma homenagem a ela, a mulher selvagem, o tipo que fascina os homens que não têm medo do feminino. Eles ficam um pouco nervosos, é verdade, quando de repente se vêem frente a frente com um espécime desses. Por isso é que às vezes sobem correndo na primeira árvore. Mas é normal. Depois eles descem, se aproximam desconfiados, trocam os cheiros e aí... Bem, aí a Natureza sabe o que faz.


Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora no Rio de Janeiro, Terra, 3a. pedra do Sol